sexta-feira, 31 de maio de 2013

Tédio ( ou desespero?).

Pausa - Moacyr Scliar 



Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama,correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu,bocejando:

— Vais sair de novo, Samuel?

Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.

— Todos os domingos tu sais cedo — observou a mulher com azedume na voz.

— Temos muito trabalho no escritório — disse o marido,secamente

Ela olhou os sanduíches:

— Por que não vens almoçar?

— Já te disse; muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.

A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga. Samuel pegou o chapéu:

— Volto de noite.

As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas. Estacionou o carro numa travessa quieta. Como pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras.Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo.

Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:

- Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...

- Estou com pressa, seu Raul - atalhou Samuel.

- Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre. - Estendeu a chave.

Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:

- Aqui, meu bem! - uma gritou, e riu; um cacarejo curto.

Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave.Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.

Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido;com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata.
Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.
Dormir.
Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.

Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido.

Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa. Perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados; índio acabara de trespassá-locom a lança Esvaindo-se em sangue, molhado de suor. Samuel tombou lentamente:ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama,correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu. Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.

- Já vai, seu Isidoro?

- Já - disse Samuel, entregando a chave. Pagou,conferiu o troco em silêncio.

- Até domingo que vem seu Isidoro - disse o gerente.

- Não sei se virei - respondeu Samuel, olhando pela porta; anoite caía.

- O senhor diz isto, mas volta sempre - observou o homem,rindo.

Samuel saiu.

Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou um instante,ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois,seguiu. Para casa.



O personagem Samuel me lembra muito o personagem Carlos do filme " São Paulo Sociedade Anônima" interpretado por Walmor Chagas e dirigido por  Luís Sérgio Person. Esse grito de libertação diante da pressão exercida pelas relações de trabalho, pela sociedade e pela família é abordado tanto no conto de Moacyr Scliar como no filme. A música " Cotidiano" de Chico Buarque consegue abordar o tema do Tédio ( ou desespero) de uma forma muito similar. Fica dica: Leia o conto, ouça a música e assista ao filme.

O endereço do filme no Youtube é esse aqui ó:

http://www.youtube.com/watch?v=WBwo5MzB7io

Diante da violência em São Paulo, somos todos Darios...

Uma Vela para Dario
Dalton Trevisan

Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

Texto extraído do livro 
"Vinte Contos Menores",  Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 20.

Este texto faz parte dos 100 melhores contos brasileiros do século, seleção de Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva.






Diante do absurdo, do medo, do desespero e da falta de expectativa de melhora da violência em São Paulo, creio que todos nós compartilhamos da fragilidade de Dário diante da insanidade e desdém pela vida do outro, entretanto a esperança está em nós mesmos que somos capazes de mudança. Segue a utopia.

Testemunho

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
Acredito que este poema de Carlos Drummond de Andrade represente as dificuldades que enfrentamos diariamente diante do imprevisto que requer improviso, reflexão e muitas vezes a ação repentina ou automática como mecanismo de defesa. Não há arma mais adequada as adversidades do cotidiano que a leitura, somente ela nos proporciona argumentos para expressar nossas opiniões e reflexões diante do caos urbano que vivemos. A leitura como busca incessante de novos conhecimentos e novas realidades- ou negação da realidade imposta-  aumenta nos leitores a percepção crítica dos acontecimentos e desperta a força mobilizadora que nos faz renegar a violência, a brutalidade e as certezas absolutas.